Monte Sinai

 
Dilema de um Erudito trinitariano

~yhiOla/ h;Wr

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Crítica à tradução de Gên 1:2 à luz do tema teológico da trindade no Antigo Testamento

By Professor Oswaldo Luiz Ribeiro

 

O Programa de Pós-Graduação em Teologia do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil encomendou-me um ensaio muito ambicioso: A Trindade no Antigo Testamento. O presente ensaio responde ao convite. Mas algumas observações preliminares precisam ser registradas: primeiro) restringi ao máximo o escopo da pesquisa, aplicando-a apenas a Gn 1,2. Um ensaio que tivesse por objetivo discutir a questão da Trindade no Antigo Testamento demandaria muito mais tempo do que se dispunha para o presente, bem como exigiria um tour de force muito maior. Segundo: o presente texto é um ensaio, um exercício de exegese. Não tem a pretensão de dizer tudo. Quer apenas  d i z e r. Deve ser lido a partir de uma pergunta retórica: “não será que?...”. Por outro lado, não deve ser lido com um “e assim o é” final. É uma proposta.

Mas uma proposta crítica. Não é um ensaio apologético da tradição, porque pressuponho uma circulação doméstica do texto e acredito que a compreensão crítica é, sempre, o melhor caminho para a maturidade. Nesse sentido, a análise que empreendo neste ensaio tem plena relação com os Princípios Batistas que pressupõem a “responsabilidade de estudar a Bíblia, com a mente aberta e com atitude reverente, procurando o significado de sua mensagem através de pesquisa e oração”[1]. Ali, espera-se que o indivíduo assuma a sua “responsabilidade de procurar a verdade”[2], particularmente, mas não exclusivamente, no magistério, onde “deve ser admitido (...) que os professores das nossas instituições tenham liberdade para a erudição criadora, com o equilíbrio de um senso profundo da responsabilidade pessoal para com Deus, a verdade, a denominação e as pessoas a quem servem”[3]. Tudo isso por quê? Porque: “a fé e a razão aliam-se no conhecimento verdadeiro. A fé genuína procura compreensão e expressão inteligente. As escolas cristãs devem conservar a fé e a razão no equilíbrio próprio”[4].

É, portanto, assim, que o presente ensaio deve ser encarado: uma pergunta responsável pelo sentido de Gn 1,2 face à proposição temática da Trindade no Antigo Testamento.

Não devemos descuidar, contudo, para o fato de que esses mesmos Princípios Batistas observam que “há limites para a liberdade acadêmica”[5], não precisando a observação senão com um apelo à responsabilidade pessoal para com Deus, a verdade, a denominação e as pessoas a quem servem, como vimos. Penso, então, que deveríamos sempre pensar essa responsabilidade como respeito para com nossa tradição secular e nossos documentos.

A presente abordagem crítica, portanto, deve ser compreendida a partir daquele equilíbrio de um senso profundo da responsabilidade pessoal. Seu ponto de partida é justamente as primeiras proposições da Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira: “a Bíblia é a Palavra de Deus em linguagem humana. É o registro da revelação que Deus fez de si mesmo aos homens[6] (...) inspirados e dirigidos pelo Espírito Santo”[7]. Registro, portanto, que o presente ensaio deseja tanto ser fiel ao espírito da Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira (DDCBB) quanto aos Princípios Batistas, assumindo de forma batista a responsabilidade pessoal da conciliação entre ambos, quando necessário.

E a necessidade de conciliação surge imediatamente com a primeira referência veterotestamentária da DDCBB ao verbete “Deus Espírito Santo”. A DDCBB destina seu segundo capítulo à proposição do tema “Deus”. Divide o tema em “1. Deus Pai”, “2. Deus Filho” e “3. Deus Espírito Santo”[8]. Aqui, apresenta a seguinte proposição: “O Espírito Santo, um em essência com o Pai e com o Filho, é pessoa divina”[9]. A proposição remete às referências bíblicas no rodapé, e, para essa primeira proposição que venho de citar, a referência bíblica introdutória é Gn 1,2. O que isso significa? Significa que o Grupo de Trabalho responsável pela elaboração da DDCBB e a Assembléia[10] que a aprovou entendiam que Gn 1,2 remete ao tema da personalidade do Espírito Santo.

O presente ensaio comunga com o espírito daquela Assembléia e daquele Grupo de Trabalho quando afirmam que “uma declaração desse tipo deve ser formulada, com a exigência insubstituível de ser rigorosamente fundamentada na Palavra de Deus”[11].

À luz dessa exigência e desse espírito, o objetivo do presente ensaio é analisar Gn 1,2 e verificar se podemos inferir daquele texto, sem detrimento de todas as demais referências bíblicas ao tema, uma clara e inequívoca referência à personalidade do Espírito Santo

I.                    A TRADUÇÃO DE  ~yhiOla/ h;Wr EM GN 1,2 

 

`#r<a'h' taew> ~yIm;V'h; tae ~yhiOla/ at''B' tyviarEB.

[Berei’shit  bara’  ‘elohim  et  hashamaim  veeiti  ha’aretz]

vEN avrch/ evpoi,hsen o` Qeo.j to.n ouvrano.n kai. th.n gh/n)

(1)1.  No princípio, Deus criou os céus e a terra.

Whbow" Whto ht'y>h' #r<a'h'w>

[veha’aretz  haytah  tohu  vavohu]

vH de. gh/ h=n avo,patoj kai. avkataskeu,astoj(

2.  Ora, a terra estava vazia e vaga, 

~Aht. ynEP.-l[:; %v,xow>

[vehoshech  al-penei  tehom]

kai. sko,toj evpa,nw th/j avbu,ssou

As trevas cobriam o abismo 

`~yIM'h; ynEP..-l[; tp,x,r:m. ~yhiOla/ h;Wrw>

[veruach  ‘elohim  merahephet  al-penei  hamaim]

kai. pneu/ma Qeou/ evpefereto evpa,nw tou/ u[datoj)

e um vento de Deus pairava sobre as águas. 

~yhiOla/ rm,aYow:

[vayomer  ‘elohim]

Kai. ei=pen o` Qeo.j(

3.  Deus disse: 

rAa-yhiy>w: rAa yhiy>

[yehi  ‘or  vayhi  ‘or]

genhqh,tw fw/j/\ kai. evge,neto fw/j)

 “Haja luz” e houve luz. 

~yhiOla/ ar>Y:w:

[vayare’  ‘elohim]

Kai. ei=den o` Qeo.j

4.  Deus viu 

bAj-yKi rAah'-ta,

[‘et-há’or  qui-tov]

to. fw/j( o[ kalo,n\

que a luz era boa, e 

~yhiOla/ lDEb.Y:w:

[vayavdel  ‘elohim]

kai. diecw,risen o` Qeo.j

Deus separou 

`%v,hoh; !ybeW rAah' !yBe,

[bem  há’or  uven  hahoshech]

avna. me,son tou/ fw/to.j( kai. avna. me,son tou/ sko,touj)

a luz e as trevas. 

~yhiOla/ ar"q.YIw:

[vayiqra’  ‘elohim]

Kai. evka,lesen o` Qeo.j

5.  Deus chamou 

hl'y>l' ar"q' %V,xol;w> ~Ay rAal'

[la’or  yom  velahoshech  qara’  laylah]

to. fw/j h`me,ran( kai. to. sko,toj evka,lese nu,kta)

à luz “dia” e às trevas “noite”. 

`dx'a, ~Ay rq<boo-yhiy>w: br<[,-yhiy>w:

[vayhi-‘erev  vayhi-boqer  yom  ‘ehad]

Kai. evge,neto e`spe,ra( kai. enge,neto prwi>( h`me,ra mi,a)

Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia. 

 ~yhiOla/  rm,aOYw:

[vay’omer  ‘elohim]

Kai. ei=pen o` Qeo.j(

6.  Deus disse

~yIM'h; %AtB. [:yqIr' yhiy>  

[yehi  raqi’a  betoch  hamayim]

genhqh,tw stere,wma evn me,sw| tou/ u[datoj\

“Haja um firmamento no meio das águas 

~yIm'l' ~yIm; !yBe lyDIb.m;

[mavdil  ben  mayim  lamayim]

kai. e'stw diacwri,zon avna. me,son u[datoj kai. u[datoj\

e que ele separe as águas das águas”,

a   !ke-yhiy.w;;; a

(ver aparatus da BHS)

[vayhi-hen]

kai. evge,neto ou[toj)

e assim se fez. 

~yhiOla/ tm,aOYw:

[vayo’mer  ‘elohim]

Kai. evpoi,hsen o` Qeo.j

7.  Deus fez 

[:yqIr"h'-ta,

[‘et-haraqi’a]

to. stere,wma\

o firmamento, 

[y;qIr"l' tx;T;mi rv,a] ~yIM;h; !yBe lDEb.Y:w:

[vayavdel  ben  hamayim  ‘asher  mitahat  laraqi’a]

kai. diecw,risen o` Qeo.j avna. me,son tou/ u[datoj o' h=n u`poka,tw tou/ sterew,matoj(

que separou as águas que estão sob o firmamento 

a !ke-yhiy.w;;;a [y;qIr"l' l[;me rv,a] ~yiM;h; !ybeW

(ver aparatus da BHS)

[uben  hamayim  ‘asher  mei’al  laraqi’a  (vayhi-hen)]

kai. avna. me,son tou/ u=datoj( tou/ evpanw tou/ sterew,matoj)

das águas que estão acima do firmamento, e 

~yhiOla/ ar"q.YIw:

[vayiqra’  ‘elohim]

Kai. evka,lesen o` Qeo.j

8.  Deus chamou 

~yIm'v' [y;qir"l'

[laraqi’a  shamayim]

to. stere,wma ouvrano,n\

ao firmamento “céu”. 

`ynIve ~Ay rq<boo-yhiy>w: br<[,-yhiy>w:

[vayhi-‘erev  vayhi-boqer  yom  sheini]

kai. ei/den o` Qeo.j o[ti kalo,n\ kai. evge,neto evspe,ra( kai. prwi>( hvme,ra deute,ra)

Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia

~yhiOla/ rm,aOYw:

[vay’omer  ‘elohim]

Kai. ei=ten o` Qeo.j(

9.  Deus disse: 

dx'a, ~Aqm'-la, ~yIm;V'h; tx;T;mi ~yIM;h; WwQ'yI

(ver aparatus da BHS)

[yiqavu  hamayim  mitahat  hashamayim  ‘el-maqom  ‘ehed]

sunacqh,tw to. u[dwr to. u`poka,tw tou/ ouvranou/ eivj sunagwgh.n mi,an (

“Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa 

hv'B'Y:h; ha,r"tew>

[veteira’eh  hayabashah]

kai. ovfqh,tw h` xhra,\

e que apareça o continente” 

!ke-yhiy>w:

 [vayhi-hen]

kai. evge,neto ou[twj\ kai. sunh,cqh to. u[dwr to. u`poka,tw tou/ ouvravou/ eivj ta.j sunagwga.j auvtw/n( kai. w'fqh h` xhra,)

e assim se fez. 

~yhiOla/ ar"q>YIw:

[vayiqra’  ‘elohim]

Kai. evka,lesen o` Qeo.j

10.  Deus chamou

 

#r<a, hv'B'Y:l;

[layabashah  ‘eretz]

th.n xhra.n( gh/n\

ao continente “terra” 

~yMiy: ar"q' ~y>M;h; hwEq.mil.W

[ulmiqveh  hamayim  qara’  yamim]

kai. ta. susth,mata tw/n u`da,twn evka,lese qala,ssaj\

e à massa das águas “mares”; e 

~yhiOla/ ar>Y:w:

[vayare’  ‘elohim]

kai. ei=den o` Qeo.j

Deus viu 

bAj-yKii

[hi-tov]

o[ti kalo,n)

que isso era bom[12]

 

As versões em português não são concordes quanto à tradução de Gn 1,2. Existe uma série de versões que traduzem o termo hebraico  ~yhiOla/ h;Wr como “Espírito de Deus” ou “espírito de Deus”[13]. Um outro grupo traduz o termo h;Wr de Gn 1,2 como “vento”[14]. Por seu turno, A Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB) o traduz para “sopro”.

Não resta dúvida que as versões que traduzem h;Wr em Gn 1,2 o fazem por questões teológicas, na verdade as mesmas que levaram o Grupo de Trabalho e a 67ª Assembléia da CBB a fazerem o texto remeter à proposição doutrinária sobre a personalidade do “Deus Espírito Santo”. É bem verdade que a tradução de h;Wr em Gn 1,2 para “Espírito” ou “espírito” é anterior à formulação da Declaração Doutrinária quando da 67ª Assembléia da CBB, de forma que devemos reputar à hermenêutica particular implícita nessa referência uma origem consideravelmente mais antiga.

Seja como for, deparamo-nos com um problema que extrapola a simples tradução de uma palavra hebraica. Sim, porque, rigorosamente, todas as possibilidades de tradução exemplificadas acima podem ser defendidas segundo o critério semântico de h;Wr. Tanto o The Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon[15], quanto o Dicionário Hebraico-Português & Aramaico Português[16] constatam a possibilidade de tradução de h;Wr como espírito, vento ou sopro[17]. Mais do que os dois anteriores, o Dicionário Bíblico Hebraico-Português[18] detalha a riqueza semântica de h;Wr na Bíblia Hebraica, corroborando aquela mesma possibilidade de tradução, relacionando-as às referências textuais de acordo com a compreensão de Schökel.

Essa riqueza (ou por isso mesmo pobreza) semântica de h;Wr se nos depara indiscutivelmente em Gn 8,1b: “Deus fez passar um vento sobre a terra e as águas baixaram”[19]. É curioso notar, e a fortiori o devo registrar, que todas as versões acima traduzem o h;Wr de Gn 8,1 como vento. Tanto o grupo de versões que traduzem h;Wr em Gn 1,2 como espírito, tanto a TEB e, claro, as versões que já o traduziam por vento são unânimes na opção semântica de Gn 8,1: é um vento que Deus faz passar sobre a terra para fazer baixar as águas.

Essa constatação não deve passar-nos por mero detalhe. Sem prejuízo das considerações teológicas que estão condicionando a opção dos respectivos tradutores, é justamente mercê da polissemia de h;Wr enquanto termo aberto, isto é, enquanto palavra capacitada por diversos sentidos conforme os enumeramos num dicionário, que essa curiosa ocorrência se pode manifestar na tradução. É por essa razão que devemos ter diante de nós a recomendação de Geir Campos, quando o assunto é tradução: “sinta-se sempre inseguro” e “jamais considere perfeitamente acabada uma tradução sua”[20], afinal, como já o dissera[21], traduttore, traditore[22].

Talvez não estejamos longe de aplicar o trocadilho ao caso da tradução pelo mesmo tradutor do h;Wr de Gn 1,2 como Espírito/espírito e do h;Wr de Gn 8,1 como vento. Qual seria a traição? A de remeter o primeiro h;Wr ao Espírito de Deus, enquanto relega o segundo h;Wr ao estado de um vento que Deus faz passar sobre a terra.

Mas observe-se de mais perto Gn 8,1. O que vemos? Vemos a terra coberta pelas águas. O imaginário textual remete-nos a uma terra submersa. Segundo Gn 7,17, as águas cresceram. Mais do que isso, as águas subiram e cresceram sobre a terra (7,18). Não pararam: subiram cada vez mais sobre a terra (7,19). Até que ponto? Até o ponto de que “as mais altas montanhas que estão sob o céu foram cobertas”. Quanto? “As águas subiram quinze côvados mais alto, cobrindo as montanhas” (7,20). Então olhemos de novo. E o que vemos? Vemos uma terra completamente submersa pelas águas do dilúvio[23].

Não nos parece o olhar para o Dilúvio um olhar às avessas para a Criação? Observemos que as origens do Dilúvio, segundo Gn 7,11b, devem-se ao fato de que "nesse dia jorraram todas as fontes do grande abismo e abriram-se as comportas do céu". Foi porque se abriram ambas, as fontes do grande abismo e as comportas do céu, que as águas subiram sobre a terra até o ponto de a submergirem completamente. A terra tornou a ser tragada pelo abismo e pelas águas.

O que nos remete, necessariamente, a Gn 1,6-10. Segundo o relato, “Deus disse: ‘Haja um firmamento no meio das águas’” (1,6a). O que isso significa? Significa que, segundo o imaginário do relato, um dos estágios da Criação divina consiste em extrair a terra do meio das águas. Quais águas? As águas de Gn 1,2, i. é, o abismo, as águas. Esse firmamento que Deus disse seja vai separar essas águas (1,6b). Mas é uma separação muito específica: “separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento” (1,7).

O que está acontecendo aqui? Quero dizer, o que o escritor de Gn 1,7 está fazendo? Não é rigorosamente a mesma coisa, mas ao inverso, que faz o escritor de Gn 7,11? E essa mesma coisa não consiste em descrever a Criação a partir de sua concepção cultural da criação? Segundo o imaginário do texto, tanto de Gn 1,7 quanto de 7,11, extraída do meio das águas, a terra interpôs-se àquelas duas metades da grandeza aquosa original, engolindo sob si o grande abismo, e sustentando as comportas do céu[24].

E mais, segundo Gn 8,2, depois de ter Deus lembrado-se de Noé (8,1) e ter feito passar um vento sobre a terra, “fecharam-se as fontes do abismo e as comportas do céu. As águas originais da Criação, guardadas desde aquele dia no grande abismo e reprimidas pelas comportas do céu, sob e sobre o firmamento que Deus fizera, aquelas águas da Criação, as mesmas de Gn 1,2, que um dia cobriram toda a terra, envolvendo-a e tornando-a vazia e vaga, essas mesmas águas tornaram a cobrir a terra tão completamente quanto antes.

Não nos parece, assim, que o Dilúvio é uma Criação às avessas? Deus retirara a terra do meio das águas (Gn 1,6-7); Deus, agora, a faz retornar para o meio delas (7,20). E não será de se deixar passar despercebida a coincidência dos termos hebraicos em Gn 1,2 e Gn 7,11. Tanto lá, quanto cá, o termo hebraico para abismo é ~Aht.. Tanto quanto em Gn 7,11, são as comportas de  ~yIm'v' que são abertas para, reunidas com as mesmíssimas e originalíssimas águas primordiais provenientes do grande abismo, cobrirem a terra. É a esse ~yIm'v' que em Gn 1,8a Deus chama céus.

Resumindo, segundo o imaginário textual de Gn 1,1-10, num dos estágios da Criação, Deus retira a terra do meio das águas. Essa terra, esse firmamento, serve tanto de cenário para receber a vida, quanto para separar aquelas águas primordiais que Deus criara, mantendo-as sob e sobre o firmamento. E lá permaneceram até que o Dilúvio se fez necessário. Então, abriram-se as comportas do céu, i. é, as águas que estão acima do firmamento, e jorraram todas as fontes do grande abismo, i. é, as águas que estão sob o firmamento. Deus faz a terra retornar ao seu estágio caótico original, se com as expressões Whbow" Whto de Gn 1,2 podemos concluir um caos primordial.

Seja como for, não resta dúvida de que o pano de fundo cultural é o mesmo para Gn 1,1-8 e Gn 7,11.17-20; 8,1-3. São as mesmas expressões que se repetem alternadamente, com os mesmos sentidos: ~Aht. ; ~yIm'v' . Deparamo-nos com a mesma configuração do imaginário textual: um firmamento que separa águas que estão acima e sob o próprio firmamento, assim dispostas por Deus. Uma origem caótica e aquosa para a terra, tanto quanto um destino caótico e aquoso para a sua destruição pelo Dilúvio. O Dilúvio é a Criação às avessas, o arrependimento da ação de Deus em criar (Gn 6,6), em retirar das águas originais a terra e a vida. Deus torna atrás, faz a terra tornar às águas primordiais.

Ora, e é exatamente nesse contexto teológico que a palavra h;Wr é empregada, uma vez em Gn 1,2, na Criação, outra vez em 8,1, no Dilúvio. Não, minto: mais do que no Dilúvio, porque Gn 8,1 já deixa a descrição do Dilúvio, e passa a descrever a Segunda Criação, i. é, a restauração do caos, a retirada das águas primordiais de sobre a terra... novamente! Fecham-se todas as fontes do abismo e as comportas do céu (8,2). Deus vai criar de novo. Mais uma vez, do meio das águas, Deus retira a terra e, com ela, a vida.

Cabe então perguntarmo-nos, mais uma vez, qual será a traição que cometem os tradutores, uma vez que, tendo traduzido o primeiro h;Wr por Espírito, traduzem, agora, o segundo, por vento. Por que mudaram de opção semântica? Por que não traduziram tanto um como o outro por Espírito, já que optaram por essa tradução em 1,2?

É certo que pelo que expus, não alcançamos garantias suficientes para nos decidirmos pela tradução de Espírito, vento ou sopro, ou qualquer outra possibilidade. Contudo, parece claro que a decisão por uma única tradução para as duas ocorrências de h;Wr (1,2 e 8,1) seja a decisão mais compatível com uma compreensão mais consistente dos textos[25]

 

II. A INTERPRETAÇÃO DE ~yhiOla/ h;Wr EM GN 1,2 

Devo confessar que a tradução de h;Wr em Gn 1,2 e 8,1 é empreendimento tão complexo quanto a interpretação de Gn 1,2. Como cristãos e, particularmente, como batistas, recebemos uma carga tradicional significativamente forte na direção da leitura trinitariana:  ~yhiOla/ h;Wr não é outro senão o Espírito de Deus, o Espírito Santo. Nossa Declaração Doutrinária remete-nos a essa leitura. Segundo a DDCBB, a compreensão do Espírito Santo enquanto pessoa divina e ator na criação depreende-se, dentre outras passagens bíblicas, de Gn 1,2[26]. Contudo, por sua vez, a exposição da complexidade da tradução de h;Wr e da semelhança estrutural do imaginário textual de Gn 1,1-10 e Gn 7.11.17-20; 8,1-3 remete-nos à pergunta se, de fato, Gn 1,2 remete-nos exegeticamente ao Espírito Santo na forma como a DDCBB pressupõe. Não se deve confundir a pergunta pela remissão que faz a DDCBB a Gn 1,2 quando da proposição doutrinária da personalidade do Espírito Santo com a pergunta, absolutamente diferente, se, de fato, o Espírito Santo é uma pessoa. Nesse sentido, cabem duas observações esclarecedoras. A primeira, é a de que este artigo entende que as referências a Gn 1,2 que faz a DDCBB como fundamentação bíblica para a personalidade do Espírito Santo e à sua atuação na criação não resultam em referências exegeticamente consistentes. Mas é a referência que resulta inconsistente, essa particularíssima a Gn 1,2; não a proposição doutrinária em si. A crítica à proposição doutrinária da personalidade do Espírito Santo ou à sua atuação na criação nos termos em que a DDCBB as propõe demandaria outro contexto, outros objetivos e outros esforços, e seria empreendimento para especialistas em Teologia Sistemática, não para um estudante de exegese.

A segunda observação refere-se ao fato de que, de fato, as duas referências a Gn 1,2 apontadas pela DDCBB não são referência à Trindade, mas à personalidade do Espírito Santo e à sua atuação na criação. Na verdade, o capítulo dois inteiro da DDCBB, que se destina ao tema de “Deus”, nem por uma única vez sequer menciona a palavra Trindade. O texto da DDCBB traz: “Em sua triunidade, o eterno Deus se revela como Pai, Filho e Espírito Santo, pessoas distintas mas sem divisão em sua essência”[27].

No que diz respeito às proposições doutrinárias que defende concernentes à doutrina de Deus, a DDCBB faz referências a grandezas quais: Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Objetivamente, a DDCBB não faz referência a uma grandeza chamada Trindade. Quando faz a afirmação “em sua triunidade”, utiliza-se de um aposto, o que torna bastante difusa a sua apreensão rigorosa: a alocução adverbial em que resulta esse aposto tem que carga semântica? É modal? I. é, a triunidade é a forma, o modo como Deus se revela? É causal? I. é, é por causa de sua essência que Deus se revela em sua triunidade? Talvez a ambigüidade da fórmula tenha sido proposital. Talvez não se tenham apercebido dela quer o Grupo de Trabalho, quer a própria 67ª Assembléia da CBB. O fato é que, da forma como está redigida a proposição doutrinária, encontramo-nos diante da defesa de uma posição teológica face às Escrituras rigorosamente da mesma forma como nos encontramos diante da própria Escritura: com a responsabilidade pessoal de interpretar e compreender. Mas isso fazendo, i. é, interpretando e compreendendo como postura ativa diante da responsabilidade pessoal, não mais teremos a instância da própria DDCBB para julgar o resultado ou dirimir eventuais incompatibilidades hermenêuticas, tanto quanto não cabe recorrer a Gn 1,2 para demonstrar a correção de nossa interpretação do próprio texto de Gn 1,2.

Em Gn 1,1, deparamo-nos com duas palavras que se repetirão no restante do texto: #r<a'h' taew> ~yIm;V'h; . Os céus e a terra equivalem aos nomes com que Deus designaria, mais tarde,  o firmamento ( 1,8a) e o continente (1,10a), respectivamente.  Se nos mantivermos dentro dos estatutos da crítica veterotestamentária e estabelecermos 2,4a como sendo o arremate do texto de Gn 1,1, novamente nos deparamos com aquelas expressões: “essa é a história do céu e da terra, quando foram criados”[28].

Essa constatação deve servir para situar nosso ponto de vista sobre o alcance da descrição de Gn 1,1-2,4a. Céus e terra são uma grandeza específica dentro do texto. Sua compreensão deve prender-se ao escopo do próprio texto. Estamos autorizados a incluir na expressão #r<a'h' taew> ~yIm;V'h; dimensões semânticas emprestadas de nossos conhecimentos da astronomia, por exemplo? Não, não estamos. Temos liberdade para concluir a respeito de teorias científicas da origem do Universo a partir dessas expressões? Não, não temos. Por quê? Porque #r<a'h' taew> ~yIm;V'h; refere-se a grandezas conceituais circunstanciadas pela cultura subjacente à elaboração do texto, e sua coerente apreensão subordina-se aos indicativos textuais.

Somente o fato de o imaginário textual remeter-nos a um mundo em que o firmamento, os céus, i. é, a abóbada celeste sustenta a metade das águas primordiais já deve servir de alerta para o universo conceitual a que se nos introduz Gn 1,1-2,4a. Não pisamos o universo da física e da astronomia modernas, mas o mundo conceitual perceptivelmente teológico e visivelmente litúrgico de uma tradição específica de Israel situada historicamente, e por isso mesmo, circunstanciada historicamente há cerca de dois mil e quinhentos anos[29].

~yIm;V' é o firmamento visível. Por cima dele, se encontram as águas que estão acima do firmamento, [:yqIr' , a quem Deus chamou “céu” (1,8a). As águas superiores, reprimidas pelo [:yqIr' , e ali contidas pelas comportas do céu, situam-se, por inferência, além dos luminares, encravados no firmamento.

#r<a'h'' é a terra, casa do homem. É o continente que Deus retira de dentro das águas que estão abaixo do firmamento. Ele as reúne numa massa e faz que surja do meio delas um continente. Esse continente é a terra. É dessa terra que fala todo o texto de Gn 1,1-2,4a.

Devemos nos perguntar se a cosmogonia de Gn 1,1-10 corresponde a alguma possível concepção cristã ou científica da criação. Essa pergunta metodológica é indispensável, porque se nos recusarmos a adotar uma hermenêutica empática a Gn 1,1-2,4a, dificilmente nossos esforços de ouvir essa Palavra serão coroados de sucesso, ainda que seja possível uma interpretação cristã ou científica do texto. Tanto é possível que constatamos a referência a Gn 1,2 na proposição doutrinária da DDCBB.

Ora, Gn 1,2 começa dando-nos conta de que a terra estava sem forma e vaga. Que terra? Não é o Cosmo. Não é o Universo. Não é o mundo que está sendo criado em Gn 1,2, mas #r<a'h'.  Gn 1,2 diz que Whbow" Whto ht'y>h' #r<a'h'w>, a terra estava vazia e vaga.

Em outra obra sua, Moises Chavez considera Gn 1,26, “a su imagen y semejanza”, como uma ocorrência de endíade[30]. A endíade é uma figura de sintaxe em que duas palavras “que significan casi lo mismo” são reunidas para ampliar e esclarecer o sentido uma da outra. WnteWmd>Ki Wnmel.c;B., portanto[31], deveria sem compreendido como esclarecimento endiádico da conformidade entre Criador e criaturas, mas uma conformidade sinonímica: os dois termos apontam para a mesma configuração de semelhança. A expressão Whbow" Whto carregue uma endíade, também. Whbow" Whto não apontariam para duas características originais da terra, mas apontaria unicamente para seu estado caótico.

Já nos antecipamos, e descobrimos que Deus vai retirar a terra do meio das águas que estão sob o firmamento (1,9). Depois que Deus criar o firmamento, terá separado as águas, o abismo, e terá posto metade delas sobre o firmamento e outra metade sob o firmamento. Dessa última metade é que a terra será tirada. De modo que Whbow" Whto apontam para a confusão dos elementos telúricos e aquosos. Podemos falar de caos, mas num sentido consideravelmente específico: a terra está misturada à água; será da água que Deus retirará a terra. Mas, por enquanto, a terra é Whbow" Whto.

Mas se  Whbow" Whto ht'y>h' #r<a'h'w>,  o que, de fato, havia? Havia o abismo. Havia  ~Aht.. Mas é igualmente incorreto pensarmos em ~Aht. fora da dimensão do imaginário de Gn 1,1-2,4a e concluirmos pela identificação do abismo com o Cosmo. Novamente, devemos nos remeter aos indicativos textuais para limitar nosso ponto de vista.

Uma observação torna-se indispensável: é a única ocorrência de ~Aht. em Gn 1,1-2,4a. Se é correto afirmar que são os indicativos textuais que nos devem remeter à compreensão do termo, uma vez que essa é a única ocorrência de ~Aht., precisamos focalizar com bastante atenção os olhos no texto.

Observemos, pois, o seguinte:

~Aht.

ynEP.-l[:;

%v,xow> '

`~yIM'h;

ynEP..-l[; tp,x,r:m.

~yhiOla/ h;Wrw>

É difícil não nos deixarmos iluminar pela estrutura paralela dos estíquios. Nas duas formulações, constata-se a presença de grandezas sobre a face de, isto é, trevas sobre a face do abismo  e ~yhiOla/ h;Wrw> (...) sobre a face das águas[32]. Ambas as grandezas sobre a face de são indefinidas: são trevas, antes que as trevas e é h;Wrw> antes que h;Wrh;w> , i. é, um espírito/vento/sopro e não o espírito/vento/sopro.

A forma como A Bíblia de Jerusalém optou pela tradução corrobora essa indefinição da grandeza referente a  h;Wrw> : “e um vento de Deus”. Mas penso que podemos avançar um passo além, chegando a concordar com a tradução de A Bíblia Sagrada Vozes: “e um vento impetuoso soprava sobre as águas”. Essa tradução faz a expressão  ~yhiOla/ h;Wrw> transformar-se de Espírito de Deus em um vento impetuoso, e devemos estar preparados para constatar o quanto podemos afastarmo-nos do sentido original de um texto quando, ao invés de envidarmos esforços para ouvi-lo, esforçamo-nos para fazê-lo nos ouvir.

Contudo, por mais surpreendente que seja a tradução da Bíblia Sagrada Vozes, ela não é inusitada. Se não em Gn 1,2, pelo menos em Am 4,11. Naquele texto, constatamos a seguinte construção sintática: ~yhiOla/ tk;Peh.m;K. . Estamos diante da mesma estrutura sintática de Gn 1,2, se comparamos ~yhiOla/ h;Wrw> com ~yhiOla/ tk;Peh.m;K. . O primeiro termo de cada uma das expressões encontra-se em estado construto, mantendo uma relação semântica regente sobre o termo qualificante, no caso, ~yhiOla/ . Um vento de ‘Elohim (Gn 1,2) ou com uma destruição de ‘Elohim (Am 4,11) têm a mesma estrutura sintática[33].

Por seu turno, mais uma vez Moises Chavez nos auxilia, precisando que a expressão ~yhiOla/ se presta a construções do grau superlativo, de modo que “los eruditos modernos prefiera traducir ~yhiOla/ h;Wr como ‘viento de Dios’, es decir: um viento fortísimo. Del mismo modo, la expresión: ~yhiOla/ tk;Peh.m; en Amós 4:11, se traduce como ‘el peor terremoto’ antes que ‘terremoto de Dios’”[34]. Nesse sentido, a Bíblia Sagrada Vozes entende exatamente como superlativa a expressão ~yhiOla/ e Gn 1,2, traduzindo ~yhiOla/ h;Wr por um vento impetuoso.

Com isso, fica ainda mais clara a estrutura paralela dos dois estíquios finais de Gn 1,2, como vimos de analisar acima: também há relação paralela entre trevas e vento impetuoso. É tanto a constatação de que trevas (estão) sobre o abismo, quanto de que um vento fortíssimo, violentíssimo, impetuoso, de ‘Elohim, (está) sobre a face das águas.

Talvez o paralelo de Sl 36,7 sirva de exemplo para a possibilidade de uso específico dos designativos divinos. Ali se diz que

lae-yrer>h;K. ^t.q'd>ci

hB'r; ~AhT. ^j,P'v.mi

A tua justiça (é) como as montanhas de ‘El (= as grandes montanhas)

os teus julgamentos, como (um) grande abismo

Tanto pelo paralelo característico do verso, quanto pela indicação da nota g de A Bíblia de Jerusalém, pode-se perceber tratar-se a expressão lae em Sl 36,7 como paralelo de hB'r;; - grandes (= altas) montanhas          grande abismo. Não se deve perder de vista o fato de que em Sl 68,16, ~yhil{a/-rh; , literalmente montanha de ‘Elohim, põe-se em paralelo com  ~yNInUb.G: rh; . Perceba-se a construção do verso:

 

!v'B'-rh; ~yhil{a/-rh;

`!v'B'-rh; ~yNInUb.G: rh;

Montanha de ‘Elohim, montanha de Bashan!

Montanha de escarpados, montanha de Bashan!

Pode-se constatar a forma plural de !Anb.G: (~yNInUb.G:)[35] para estabelecer paralelo tanto semântico como sonoro com ~yhil{a// :

 

Har-‘elohim, har-bashan!
Har gavnunnim, har basan!

Para insistir-se na tese de que os designativos divinos prestam-se à construções sintáticas em que funcionam como uma espécie de superlativo, outro exemplo seria Sl 80,11:

 

HL'ci ~yrIh' WSK'

lae-yzEr>a; h'yp,n"[]w:  

Cobriam as montanhas as suas (= dela) sombras

e os seus ramos, os cedros de ‘El (= os cedros mais altos)

Em Gn 1,2, portanto, está perfeitamente demonstrada a possibilidade sintática de tratar-se o designativo divino por um superlativo: forte, impetuoso, violento. Não estranha, pois, o estado caótico das águas...

A última relação paralela fica por conta das expressões ynEP..-l[; que se repetem no primeiro e no segundo estíquio do paralelismo sinonímico. Sobre a face de, seja  o abismo, sejam as águas. Entretanto, no segundo estíquio, a expressão acresce-se do particípio feminino singular Piel tp,x,r:m. . Isso me obriga a uma discordância com os dicionários de que disponho. Tanto o Dicionário Sinodal/Vozes, quanto o da Paulus sugerem para o Piel de  tp,x,r:m. a concepção de sobrevoar, voejar, bater as asas, remetendo a Dt 32,11. O Analítico de Davidson ainda vai mais longe: apresenta a tradução desse Piel como brood, que, entre outras concepções no vernáculo, significa chocar (a galinha a seus pintinhos, por exemplo); também indica a possibilidade de tradução para flutter e hover.

Mas há algo que não faz sentido nessa proposição semântica. A forma de Qal da raiz $xr significa, segundo esses mesmos dicionários, tremer, estremecer (Sinodal/Vozes); deslocar-se, entrechocar-se (Paulus); shake, tremble (Analítico de Davidson). Todos os três remetem-nos a Jr 23,9, em que lemos: “Meu coração está quebrado dentro de mim, estremeceram todos os meus ossos”.

Sabe-se que a forma verbal Piel tem significado “intensivo, reforçando o conceito verbal”[36]. Moises Chavez concorda com a afirmação: “su connotación o idea central es intensidad en la acción”[37]. Pois o que não faz sentido reside justamente no fato de que aqueles dicionários apresentam para a forma Qal de $xr um sentido mais intenso do que quando na forma Piel: estremecer, em Qal e voejar, no Piel.

Os tradutores[38] da Bíblia Sagrada Vozes traduzem tp,x,r:m. para soprava, cujo sentido podemos admitir como intensivo em relação a estremecer, já que quem sopra é um vento impetuoso. Lamentavelmente, Moises Chavez é reticente quando trata do sentido da raiz $xr: “no obstante, el sentido del verbo $xr y el uso del nombre ~yhiOla/ en expressiones que expresan grado superlativo, hacen que el concenso de los eruditos modernos prefiera traducir ~yhiOla/ h;Wr como ‘viento de Dios’, es decir: um viento fortísimo”[39]. Mais nada nos diz. Mas com o que temos, creio ser suficiente para não levar em consideração as propostas de tradução daqueles dicionários, e pressupor uma conotação mais afeita ao contexto da situação caótica dos elementos conforme a descrição de Gn 1,2.

É verdade que tais conotações permitem a interpretação do segundo estíquio do paralelismo no sentido de o Espírito de Deus pairar sobre as águas como a águia de Dt 32,11, onde consta a mesma forma Piel daquela raiz: “como a águia que vela por seu ninho e revoa por cima dos filhotes”, sugerindo uma presença vivificante do Espírito Santo enquanto ator da criação. Contudo, no relato sacerdotal, pelo que se depreende de Gn 1,1-2,4a, a criação é obra da Palavra de ‘Elohim, e a compreensão semântica de ruah como espírito de ‘Elohim é uma possibilidade semântica casual, que deve ser evitada.

A própria referência a Dt 32,11 já deveria levantar suspeitas sobre a compreensão de uma suposta atividade plácida  de ~yhiOla/ h;Wr. A águia não está voejando, alegremente: está defendendo e protegendo Jacó. E, seja como for, não é o bater das asas de um pardal, mas de uma águia, e as conseqüências da atividade de ~yhiOla/ h;Wr eram, certamente, bastante mais intensas. 

O que já se pode depreender do paralelismo:

e trevas   

e trevas   

 abismo 

e um vento fortíssimo  

 que sopra sobre a face das

 águas

 

Na estrutura paralela, trevas equivale a vento fortíssimo; abismo equivale a águas; e sobre a face do equivale a que sopra sobre a face das. O paralelismo entre ~Aht. e ~yIM'h; explica a única referência a ~Aht. , porque é introduzido no primeiro estíquio como termo sinonímico de ~yIM'h; , que reaparecerá novamente na descrição sacerdotal da Criação.

Se observarmos atentamente, verificaremos que esses dois estíquios, mais precisamente, o paralelismo sinonímico que formam, prestam-se a precisar a situação caótica da terra sem forma e vaga. A terra estava sem forma e vaga, como vimos, porque está, ainda, misturada às águas primordiais, ao abismo. E o próprio abismo está envolvo em trevas. As próprias águas encontram-se revoltas por um vento fortíssimo. Não há ordem. Não há harmonia. Há uma confusão primordial. Há uma desarmonia caótica...

... até que ‘Elohim diga: rAa-yhiy>w: rAa yhiy> :”’Haja luz’ e houve luz”. Nessa Palavra, Deus ordena, tanto no sentido de estabelecer o comando da Criação, quanto de organizar os elementos caóticos em que consistem as águas, o abismo. Luz, aqui, é o elemento harmonizador e organizador do caos. Enquanto que o ruah ‘Elohim era, justamente, o elemento fomentador do caos. A partir da luz, Deus organiza o caos: separa, extrai, reúne, acomoda, organiza. A terra surge do meio das águas; as águas encontram seu lugar na nova ordem, porque essa é uma ordem em que as coisas possuem seu devido lugar e acontecem dentro de seu devido tempo. Tudo tem sua função. Como na liturgia.

Não há que se por em dúvida a personalidade do Espírito Santo. Contudo, não podemos concordar com a referência que a DDCBB faz a Gn 1,2 como fundamentação bíblica para essa proposição doutrinária. Por outro lado, a sustentação da atuação do Espírito Santo na Criação é tarefa inglória se se depende de Gn 1,2. A palavra hebraica que se utiliza para remeter à Sua presença ali não parece sustentar uma leitura ativa na organização do céu e da terra, conseqüentemente, da vida. Pelo contrário, ~yhiOla/ h;Wr, um vento fortíssimo remete justamente ao estado de caos primitivo, à confusão da terra e das águas. É a luz, que intrometendo-se nas trevas, aquieta esse vento fortíssimo e traz paz ao caos. Aquietado, Deus pode, agora, organizá-lo. 

NOTA Monte Sinai: Esta mesma expressão hebraica para vento aparece novamente em Êxo 14:21 quando as águas foram divididas! Quanto ao abismo (caos) o veremos novamente após a Gloriosa volta do nosso Senhor Jesus, quando os elementos abrasados pela Sua presença tornará a terra um caos desabitado (Apoc 6:12-17; II Ped 3:1-13)e servindo de prisão para satanás... Apoc 20:1-3.

________________________________________

 Apontamentos posteriores à remessa para publicação:

Jó 26,13: “seu sopro varreu os céus, sua mão traspassou a serpente fugidia” aponta mitologicamente para o ruah de ‘Elohim dentro da perspectiva do mito cosmogônico cananeu: “Com sua força fendeu o Oceano, com sua inteligência esmagou Rahab” (Jó 26,12). Talvez deva reconsiderar e entender, em todo caso, o ruah  como mais do que um vento fortíssimo? Se bem que, entre o mito cosmogônico e Gn 1,2 vão-se léguas de distância – e um contra-mito babilônico tenderia a caracterizar-se, também, como um contra-mito cananeu. Nesse caso, no mito cosmogônico israelita primitivo, Iahweh vence o Oceano com o ruah, e a Rahab, a Nahash sinuosa, fugidia, com sua mão. É pesquisar e ver.

(12 de junho de 2001)


[1] PRINCÍPIOS BATISTAS. Rio de Janeiro, JUERP, 1987. p2 (Série DOCUMENTOS BATISTAS, I).

[2] Idem. p5.

[3] Idem. p23.

[4] Idem. p22.

[5] Idem. p23.

[6] DECLARAÇÃO DOUTRINÁRIA DA CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA.  3ª ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1991. p5. (Série DOCUMENTOS BATISTAS, II).

[7] Idem. p5.

[8] Idem. p6-8.

[9] Idem. p8.

[10] Trata-se da 67ª Assembléia da Convenção Batista Brasileira.

[11] DECLARAÇÃO DOUTRINÁRIA DA CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA. p4.

[12] O texto hebraico de Gn 1,1-10 é da Biblia Hebraica Stuttgartensia, edição de 1987. A transliteração segue a gramática de Moises Chavez (Hebreo Biblico – texto programado: tomo I.  El Paso: Editorial Mundo Hispano, 1988). O texto grego é da The Septuagint with Apocrypha Greek and English, da Zondervan Publishing House, edição de 1988. A versão portuguesa segue A Bíblia de Jerusalém, edição da Paulinas, 4ª impressão de agosto de 1989.

[13] Servem de exemplo desse tipo de tradução as versões da IBB (ver. e cor.; e revisada), da SBB, incluindo as co-edições (cf. Vida Nova), da Alfalit, da Loyola e da Editora Ave Maria, dentre outras.

[14] São desse tipo: A Bíblia de Jerusalém e a Edição Pastoral, da Paulinas, e a Bíblia Sagrada Vozes.

[15] DAVIDSON, B. The Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon. Grand Rapids: Zondervan, 1988.

[16] DICIONÁRIO HEBRAICO-PORTUGUÊS... São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal: 1989.

[17] Na verdade, a acepção é até mais ampla: ar; brisa, aragem, vento; ar respirado ou exalado, sopro, fôlego, hálito, bafo; (o) nada, (o) vazio, (o) transitório; espírito (de Deus e dos homens); mente, espírito; humor, disposição; ânimo, alento; sentido; lado (do vento).

[18] SCHÖKEL, L. A. Dicionário Bíblico... São Paulo: Paulus, 1997.

[19] Quando não especificadas, as citações bíblicas seguem a versão de A Bíblia de Jerusalém.

[20] CAMPOS, G. Como Fazer Tradução. Petrópolis: Vozes, 1986. Na verdade, Geir Campos utiliza-se do decálogo da arte de tradução elaborado pelo “afamado tradutor europeu” (...), o polonês Karl Dedecius” (p39).

[21] Idem. p7.

[22] I. é, tradutor, traidor.

[23] Uma leitura complementar, com fins a uma análise fenomenológica da tradição do Dilúvio bem se faria em J. G. Frazer, El Folklore en el Antiguo Testamento. Trad. de Gerardo Novás. México: Fondo de Cultura Economica, 1982. p65-187.

[24] O espaço não mo permite, mas seria necessária, aqui, uma referência a Jó 7,12 e, daí, à relação sócio-cultural com os mitos cosmogônicos acádicos e babilônicos. O leitor o faça, por favor, a partir de, por exemplo, A Criação e o Dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. Trad. De M. Cecília de M. Duprat. São Paulo: Paulinas, 1990. p13-19 (especialmente p16: “...instalou guardas, confiou-lhes a missão de não deixar sair suas águas”).

[25] Por esta razão optei por seguir a tradução de A Bíblia de Jerusalém que, juntamente com a Edição Pastoral (também da Paulinas) e a Bíblia Sagrada Vozes traduzem ambas ocorrências pelo mesmo vocábulo (no caso, vento).

[26] DECLARAÇÃO DOUTRINÁRIA... p8, notas 1 e 3.

[27] p6.

[28] Nesse caso, o texto completo a que pertenceria 1,2 seria 1,1-2,4a. O leitor informado, não necessariamente concorde, reconhece nessa afirmação a admissão tácita dos resultados da crítica bíblica. Uma fundamentação nesse sentido pode ser buscada na literatura bíblico-teológica contemporânea, como, por exemplo, N. K. Gottwald (Introdução Sócio-Literária à Bíblia Hebraica), G. Fohrer (Introdução ao Antigo Testamento), G. von Rad (Teologia do Antigo Testamento), J. Schreiner (Palavra e Mensagem), dentre outros.

[29] Parece coerente concluir que, se o presente ensaio admite a estrutura textual de Gn 1,1-2,4a sugerida pela crítica, também pressupõe sua relação com a fonte sacerdotal pós-exílica. Não deve o leitor tomar essa vinculação teórica como definitiva, uma vez que a abordagem histórico-sociológica do Antigo Testamento tem proposto alterações na teoria das fontes do Pentateuco que ainda merecerão aprofundamentos. Seja como for, o pressuposto é o de que Gn 1,1-2,4a consiste na elaboração sacerdotal do tema das origens. Reporte-se o leitor àquelas referências bibliográficas anteriores para aprofundamentos.

[30] Modelo de Oratória obra basada en el análisis estilístico del texto hebreo del libro de Amós. Miami: Editorial Caribe, 1979. p76.

[31] O aparatus da BHS constata a queda do vav e a sua presença em manuscritos importantes.

[32] Ambas traduções são minhas.

[33] De fato, o Analítico de Davidson citado apresenta a palavra tk;Peh.m;K. como nome feminino singular construto, da raiz  $ph.

[34] Op. cit. p482.

[35] Schökel, p.129 (escarpado).

[36] BAUMGARTNER, W. (ed) Gramática Elementar da Língua Hebraica. 8ª ed. Trad. de Nelson Kirst. São Leopoldo: Sinodal, 1996. p55.

[37] Op cit. p207.

[38] Ludovico Garmus, que é também o revisor exegético para o Antigo Testamento.

[39] Op cit. p482.

Veja também:

A trindade posta em Cheque por um Ateu]

 


Você está preparado espiritualmente? Sua família está preparada? Você está protegendo seus amados da forma adequada? Esta é a razão deste ministério, fazê-lo compreender os perigos iminentes e depois ajudá-lo a criar estratégias para advertir e proteger seus amados. Após estar bem treinado, você também pode usar seu conhecimento como um modo de abrir a porta de discussão com uma pessoa que ainda não conheça o plano da salvação. Já pude fazer isso muitas vezes e vi pessoas receberem Jesus Cristo em seus corações. Estes tempos difíceis em que vivemos também são um tempo em que podemos anunciar Jesus Cristo a muitas pessoas.

Se você recebeu Jesus Cristo como seu Salvador pessoal, mas vive uma vida espiritual morna, precisa pedir perdão e renovar seus compromissos. Ele o perdoará imediatamente e encherá seu coração com a alegria do espírito de Deus. Em seguida, você precisa iniciar uma vida diária de comunhão, com oração e estudo da Bíblia.

Se você nunca colocou sua confiança em Jesus Cristo como Salvador, mas entendeu que Ele é real e que o Fim dos Tempos está próximo, e quer receber o Dom Gratuito da Vida Eterna, pode fazer isso agora, na privacidade do seu lar. Após confiar em Jesus Cristo como seu Salvador, você nasce de novo espiritualmente e passa a ter a certeza da vida eterna em Seu Reino, como se já estivesse com Ele.  Se quiser saber como nascer de novo, CLIC AQUI AGORA!!!

No entanto, se a dificuldade está nas doutrinas (de homens) que a sua igreja prega, siga então o último conselho bíblico: Saia dela Povo Meu! Apoc 18:4.

...E, se Eu for e vos preparar lugar, virei outra vez, e vos tomarei para Mim mesmo, para que onde Eu estiver estejais vós também. João 14:3

Esperamos que este ministério seja uma bênção em sua vida. Nosso propósito é educar e advertir as pessoas, para que vejam que Jesus está às portas!!!

Que Deus o abençoe.

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